7.11.09

A turba da Uniban

Coluna de Contardo Calligaris na Folha de S. Paulo, 05.11.09

Na semana passada, em São Bernardo, uma estudante de primeiro ano do curso noturno de turismo da Uniban (Universidade Bandeirante de São Paulo) foi para a faculdade pronta para encontrar seu namorado depois das aulas: estava de minivestido rosa, saltos altos, maquiagem -uniforme de balada.

O resultado foi que 700 alunos da Uniban saíram das salas de aula e se aglomeraram numa turba: xingaram, tocaram, fotografaram e filmaram a moça. Com seus celulares ligados na mão, como tochas levantadas, eles pareciam uma ralé do século 16 querendo tocar fogo numa perigosa bruxa.

A história acabou com a jovem estudante trancada na sala de sua turma, com a multidão pressionando, por porta e janelas, pedindo explicitamente que ela fosse entregue para ser estuprada. Alguns colegas, funcionários e professores conseguiram proteger a moça até a chegada da PM, que a tirou da escola sob escolta, mas não pôde evitar que sua saída fosse acompanhada pelo coro dos boçais escandindo: "Pu-ta, pu-ta, pu-ta".

Entre esses boçais, houve aqueles que explicaram o acontecido como um "justo" protesto contra a "inadequação" da roupa da colega. Difícil levá-los a sério, visto que uma boa metade deles saiu das salas de aula com seu chapéu cravado na cabeça.

Então, o que aconteceu? Para responder, demos uma volta pelos estádios de futebol ou pelas salas de estar das famílias na hora da transmissão de um jogo. Pois bem, nos estádios ou nas salas, todos (maiores ou menores) vocalizam sua opinião dos jogadores e da torcida do time adversário (assim como do árbitro, claro, sempre "vendido") de duas maneiras fundamentais: "veados" e "filhos da puta".

Esses insultos são invariavelmente escolhidos por serem, na opinião de ambas as torcidas, os que mais podem ferir os adversários. E o método da escolha é simples: a gente sempre acha que o pior insulto é o que mais nos ofenderia. Ou seja, "veados" e "filhos da puta" são os insultos que todos lançam porque são os que ninguém quer ouvir.

Cuidado: "veado", nesse caso, não significa genericamente homossexual. Tanto assim que os ditos "veados", por exemplo, são encorajados vivamente a pegar no sexo de quem os insulta ou a ficar de quatro para que possam ser "usados" por seus ofensores. "Veado", nesse insulto, está mais para "bichinha", "mulherzinha" ou, simplesmente, "mulher".

Quanto a "filho da puta", é óbvio que ninguém acredita que todas as mães da torcida adversa sejam profissionais do sexo. "Puta", nesse caso (assim como no coro da Uniban), significa mulher licenciosa, mulher que poderia (pasme!) gostar de sexo.

Os membros das torcidas e os 700 da Uniban descobrem assim um terreno comum: é o ódio do feminino - não das mulheres como gênero, mas do feminino, ou seja, da ideia de que as mulheres tenham ou possam ter um desejo próprio.

O estupro é, para essas turbas, o grande remédio: punitivo e corretivo. Como assim? Simples: uma mulher se aventura a desejar? Ela tem a impudência de "querer"? Pois vamos lhe lembrar que sexo, para ela, deve permanecer um sofrimento imposto, uma violência sofrida -nunca uma iniciativa ou um prazer.

A violência e o desprezo aplicados coletivamente pelo grupo só servem para esconder a insuficiência de cada um, se ele tivesse que responder ao desejo e às expectativas de uma parceira, em vez de lhe impor uma transa forçada.

Espero que o Ministério Público persiga os membros da turba da Uniban que incitaram ao estupro. Espero que a jovem estudante encontre um advogado que a ajude a exigir da própria Uniban (incapaz de garantir a segurança de seus alunos) todos os danos morais aos quais ela tem direito. E espero que, com isso, a Uniban se interrogue com urgência sobre como agir contra a ignorância e a vulnerabilidade aos piores efeitos grupais de 700 de seus estudantes. Uma sugestão, só para começar: que tal uma sessão de "Zorba, o Grego", com redação obrigatória no fim?

Agora, devo umas desculpas a todas as mulheres que militam ou militaram no feminismo. Ainda recentemente, pensei (e disse, numa entrevista) que, ao meu ver, o feminismo tinha chegado ao fim de sua tarefa histórica. Em particular, eu acreditava que, depois de 40 anos de luta feminista, ao menos um objetivo tivesse sido atingido: o reconhecimento pelos homens de que as mulheres (também) desejam. Pois é, os fatos provam que eu estava errado.

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Nota minha:

Tudo isso é muito triste. Intuo que não seja apenas um fenômeno brasileiro, mas também global. O mundo todo parece caminhar para isso. Quando Obama foi eleito, imaginei que alguns dogmas teriam sua queda como um efeito em cadeia. Que o fenômeno da austeridade seria um período de reclusão interior das pessoas, em busca de se centralizarem, encontrarem o equilíbrio internamente, sem o desvario do consumo para justificar sua existência. Bobagem minha...

Obama não mudou nada, pois nada muda nunca. O que esse caso Uniban nos mostra é o que realmente passa nas mentes e corações do real consumidor brasileiro jovem. Sim, esse que você insiste em ver como um jovem dinâmico, que gosta de balada, que estuda, que faz mil coisas ao mesmo tempo, que tá na luta, que tá na batalha, que conversa com seus amigos pela internet, que paquera, que quer viver a vida. Sim, eles fazem tudo isso, mas depois desse episódio da Uniban, a partir de uma amostragem de 700 dessa espécie, pudemos finalmente ver do que é feito o imaginário deles: machismo, moralismo, reacionarismo e sexismo. Porém, aqui não vale o fundamentalismo, pois eles não são infringentes de uma maioria. Sabemos agora que eles são a maioria, e a prova de que qualquer sufixo "ismo" caberá aqui como definição de doença. Não existe ética. Só existe um arremedo arcaico de moral.

Amigos publicitários, nada do que acreditamos sobre o consumidor poderá ser encarado da mesma forma. Algo mudou. É necessário regredir. É necessário repensar que, talvez, em nosso amado Brasil, não estamos vivendo em um momento de ruptura graças à tecnologia. O mundo pode até estar evoluindo, mas não cabe aqui no país. Maslow talvez não caiba para explicar o jovem brasileiro. Talvez o papel das marcas tenha que ser um passo anterior, algo mais próximo do papel civilizatório e não desses conceitos gringos bonitos, feitos para gente que já sabe usar papel higiênico.

Acho que, talvez, caberá às empresas e marcas e tal, o papel de ensinar ao jovem brasileiro dessa nova classe média emergente e universitária, conceitos como liberdade, individualidade, privacidade, igualdade, dignidade, e o mais importante: respeito. As empresas e marcas e tal não podem pensar em falar com um consumidor já pronto. Pelo jeito, assim como no início do século XX aqui no Brasil, teremos que criar um consumidor. O ciclo não se fechou, é preciso recomeçar, mais uma vez. Estão preparadas p'ra isso?

Se for verdade aquela máxima "Dê infinitas máquinas de escrever para infinitos macacos e eles eventualmente produzirão todas as obras de Shakespeare", temo que no nosso amado Brasil temos ainda que esperar por pelo menos 60 milhões de anos para evoluir.

Desisto...

PS.: A moça foi expulsa da Uniban.

4 comentários:

  1. Sou brasileira e não desisto nunca ;-)
    Uma coisa é evolução tecnológica (veloz!) e outra, muito diferente é a evolução cultural, bem mais lenta, orgânica, humana afinal.
    E esse pessoal da Uniban é a nova classe média, que acessou a educação. Eram 1 milhão de universitários há 10 anos contra 4 milhões de agora. Existem sim os jovens antenados, descolados, trend setters. E existe também a grande maioria, a grande massa brasileira chamada classe BC, que está evoluindo em seu desenvolvimento sócio cultural. Eles não puderam até então se dotar com valores morais como dignidade, igualdade e respeito porque talvez estivessem ocupados demais tentando conseguir água potável, esgoto encanado e comida 2x por dia. Mas agora eles chegaram a um novo patamar em suas vidas com a educação mais acessível. Agora eles são universitários. Eles acreditam que podem ser melhores, e eu acredito neles. E cabe sim também ás marcas educar valores mais nobres a este público. É preciso muita paciencia.... ;-)

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  2. Muito bom o texto. Tão bom q eu vou transplantar parte para o meu blog :)

    O mais louco é a aluna ser expulsa da Uniban. A reação inicial é se espantar por tal atitude partir de alunos universitários. Mas aí os doutores da Uniban mostram que os alunos não estão sozinhos no desatino.

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  3. Pedro Dalto: A aluna não foi expulsa da Uniban.

    Vale a pena ir mais a fundo no que se lê ao invés de ficar no disse-que-disse que, aparentemente, é mais um problema bastante Brasileiro.

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  4. Ah, erro meu. Ela foi expulsa sim. Mea culpa.

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